Ferrugem (Revisitado 2016)

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Ferrugem é um nome que toda a gente, mais ou menos atenta à cena gastronómica nacional, já ouviu falar, mas que poucos tiveram a ousadia e a consequente satisfação de visitar e vivenciar. Somos um povo dado a comodismos, e percorrer km’s de autoestrada para visitar um restaurante ainda não faz parte do roteiro habitual dos portugueses, ainda que esteja a menos de uma hora do Porto!

Pois bem, este Ferrugem nasceu em 2006, na invulgar localidade de Portela, junto a Famalicão, pela mão do casal Dalila e Renato Cunha, que juntaram a sua paixão autodidata pela cozinha com a ousada – talvez louca seja a expressão mais correcta – vontade de criar um restaurante de autor numa zona rural da conservadora região do Minho. O talento foi-se fazendo sentir e a sua marca de “Portugalidade” foi conquistando até os críticos mais difíceis (os locais), basta para isso recordar o imenso sucesso do seu Pastel de Bacalhau com Nata, o seu caldo verde, ou a sua Cavala fumada com ovas de vinagre Moura Alves (ver).

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Quis o destino que estas 4 mãos se separassem, mas que o projecto se mantivesse vivo e à prova de ferrugem! Com Renato Cunha ao leme do projeto, o restaurante vive uma fase bonita da sua vida, tendo já em 2016 conquistado o título de Melhor “Restaurante Fora de Portas” nos prémios Flavors & Senses – Os Melhores para 2016 (ver).

Mas deixemos a história e rumemos a mais uma visita pelo Portugal gastronómico.

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O restaurante mantém a decoração sóbria de influência minhota, em que o alto pé-direito e as paredes de granito ganham conforto e aconchego na moderna lareira que serve de peça central ao restaurante.

Já na mesa, bem instalados e com conforto, mantêm-se prazeres de outros tempos, como a Manteiga de Azeite, e o pão caseiro de Ameixas e noz. Na manteiga está bem patente a ideia de recriar a Portugalidade, transformando o nosso clássico azeite numa pasta para barrar no pão que é servida em jeito de bisnaga de pasta medicinal Couto.

ferrugem2016-3Iogurte de Carabineiro
O primeiro snack não tardou na mesa, e se antes tínhamos sabores clássicos, agora a boca leva um kick de alegria e frescura que a prepara, e bem, para a refeição que se seguiria, deixando as papilas bem activas. De iogurte, apenas o nome e textura de um creme à base de nata, cabeças de carabineiro assadas e citrinos, com destaque para a lima kaffir. O Marisco é servido na sua forma mais nobre, cru, e ligeiramente marinado. Um belo início!

ferrugem2016-4Entre o Panadinho e o molho verde, venha o Polvo e Escolha!
O nome do prato diz quase tudo sobre ele, e na sua génese esteve a combinação de dois clássicos da cozinha tradicional, a modesta e inocente salada de polvo e os reconfortantes filetes de polvo, que com o twist habitual da casa se transformou num “gelado” de polvo frito, acompanhado de uma maionese de alho e cebolinho ao jeito de um molho tártaro, cebola crocante e camarão da costa desidratado. Nota alta para a qualidade da fritura e para a brilhante textura do polvo, muito bem conjugado com a untuosidade e frescura da maionese e o sabor da cebola, elevando-se no final com o sabor intenso e a crocância do camarão. Delicioso!

A harmonizar esteve um vinho de um dos mais cativantes produtores da Região dos vinhos Verdes, Aphros, com um interessante Aphros Loureiro Reserva Bruto 2014, um espumante jovem, ainda cheio de garra e com grande poder aromático, o que facilitou a combinação com os snacks.

ferrugem2016-5Caldo Verde, Broa de milho
Esta é, há anos, a habitual saudação do chef no Ferrugem, e percebe-se porque não sai de cena. 1º porque personifica o espírito e ideologia do restaurante, 2º porque é ótimo! É comida de conforto, que de olhos fechados nos leva para a cozinha da avó ou de uma tia com mão de cozinheira, é o Minho e é Portugal. O sabor está lá todo, e o chouriço é o que está em maior destaque como gostam os minhotos e nós transmontanos. A textura quase sedosa é outro dos pontos altos.

ferrugem2016-6Bacalhau com Todos
Este foi o último prato de Renato Cunha a tornar-se famoso, muito por culpa da sua apresentação no Congresso Nacional de Cozinheiros, julgo que em 2014. Outro prato que parece recriar, em arte moderna, a Gastronomia Portuguesa imortalizada por Maria de Lurdes Modesto. Os elementos não poderiam ser mais conhecidos, grão de bico transformado numa espécie de húmus, azeitonas cobrançosa e bical em forma de pasta, cebola nuns brilhantes pickles, ovo de codorniz e claro o nosso Rei, o bacalhau, servido cru, depois de uma cura que não me parece a habitual e muito bem cortado em jeito de fatias de sashimi. Uma salada fria, com uma ótima conjugação de sabores e texturas onde o ex-libris é sem dúvida a textura do bacalhau e delicadeza e sabor dos pickles de cebola (feitos com açafroa dos Açores e beterraba).

No copo não faltou um clássico que é também um dos meus brancos preferidos, o Soalheiro Primeiras Vinhas, neste caso o 2015, um grande ano, que não só nos dá grandes alegrias hoje como o fará certamente daqui a 10 anos, elegante de aroma perfumado e com fruta na dose certa, cresce na boca com a mineralidade que o caracteriza e uma grande complexidade de sabor. Um grande vinho para um grande prato!

ferrugem2016-8Robalo Selvagem, foie do mar e arroz de boletos
Este foi o prato que me fez marcar o regresso ao restaurante (depois de ver o chef a apresentá-lo num programa televisivo) e não me desiludiu. Peixe de grande porte (5kg) cozinhado na perfeição depois de algum tempo em salmoura, fígado de raia, com a gordura e untuosidade certa, chutney de boletos, e arroz cremoso de boletos servido no ponto. Excelente o contraste de sabores Terra/Mar e o jogo de texturas posto no prato, os rebentos que normalmente nada trazem aos pratos, dão aqui um ligeiro toque de frescura que aligeira o prato.

No que a vinhos diz respeito voltamos ao projecto Aphros para uma grande, grande surpresa, um Afros Loureiro 2009, um vinho ligeiramente oxidado e com tempo suficiente de descanso para pensar no que se queria tornar, e assim foi, tornou-se um vinho muito mais delicado e interessante que um Loureiro de Verão, uma espécie de Riesling, com notas maduras, alguma doçura mas com acidez e carácter para o fazerem durar.

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Para limpar o palato, um simples mas sempre eficiente sorbet de limão, aromatizado com amêndoa amarga e elevado pelas petazetas que sempre nos fazem regressar à infância, enquanto todos os comensais esboçam sorrisos de alegria à medida que se vão fazendo sentir os estalidos.

ferrugem2016-10Arouquesa Maturada, puré de cenoura
Pojadouro maturado por 5 semanas, cozinhado no ponto, de textura ainda firme e com alguma resistência que compensa a rigidez com o sabor e gordura bem entremeada. A acompanhar esteve muito bem o puré, ligeiramente doce e amanteigado que contrasta bem com o a explosão do pickle. Ótimo o jus que rega a carne e liga todos os elementos.

Para acompanhar a carne viajamos até ao Alentejo com um tinto, Julian Reynolds Reserva 2009, um vinho cheio de fruta, que se liga bem com a carne, com boa integração da madeira  e taninos elegantes. Sem surpreender foi uma boa companhia para o prato.

ferrugem2016-11Queijos Portugueses
Para terminar não houve a homenagem ao Abade Priscos que deve ir na sua 4ª interpretação, mas houve um Queijo São Jorge DOP com cura de 30 meses, que Renato trouxe de uma visita recente aos Açores e que nos levou a um elevadíssimo nível de prazer. Competente também o queijo amanteigado, tudo muito bem acompanhado pela espécie de gelado de figo pingo de mel com vinagre Moura Alves e as telhas crocantes que trouxeram ao prato dimensão, textura e sabor.

A harmonização ficou a cargo de um elegante vinho doce de Setúbal, Moscatel Roxo 20 anos da José Maria da Fonseca, um vinho de um lindíssimo tom âmbar e notas de laranja, caramelo e especiarias que funcionaram lindamente com o queijo.

ferrugem2016-12Renato Cunha*

O Serviço de sala é competente e a presença do chef na sala para apresentar e explicar os pratos, sempre que possível, torna a experiência ainda mais interessante e completa do ponto de vista do comensal que quer conhecer uma cozinha de autor.

Considerações Finais
Lemos muitas vezes que não existem mais estrelas Michelin em Portugal (ainda que este tenha sido um bom ano) porque os críticos espanhóis não compreendem a cozinha Portuguesa tal como ela é, em certa parte tendo a concordar, mas por outro lado, foi quando os restaurantes de fine dining se voltaram para os sabores do nosso país e os seus ingredientes e raízes que o seu trabalho começou a ser mais reconhecido a todos os níveis. Pergunto-me também se são só os críticos que não compreendem essa Portugalidade ou se os portugueses também não! – Mas isto daria asas para muito texto e este já vai longo.

O que quero dizer, e passando a bola de novo para o Ferrugem, é que este projecto de Renato Cunha tem muito para oferecer, acredito que tem ainda mais a oferecer no dia em que Renato tenha o suporte dos comensais para dar liberdade à sua veia criativa, ao produto e à sua paixão pelo que é nosso, sem ter de se preocupar tanto com a gestão, as contas, os ordenados e a sustentabilidade do projecto ( sim, para os leitores mais desatentos nem tudo na vida de chef é Rock & Roll!). A estrela ajudaria a isso, ajudaria a que os portugueses abrissem os olhos e fossem visitar um dos melhores restaurantes com relação/qualidade preço do país, que por sinal não está nem em Lisboa nem no Porto para benefício da regionalização. Mas para que chegue, e acredito que irá chegar, há detalhes que precisam ainda de ser limados e aprimorados como Renato e a sua equipa saberão melhor do que eu, o que não é justo é que os críticos e os portugueses se esqueçam de visitar uma pequena aldeia minhota em que se serve Portugal com uma ou outra pitada de magia.

Ferrugem
rua das pedrinhas, 32, Portela, Famalicão
+41° 27′ 41.83″, -8° 26′ 53.63”
252 911 700

 English Version

 Fotos: Flavors & Senses e * Tiago Lessa 

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One Trackback

  • […] O Ferrugem é um marco da gastronomia nacional, muito por culpa da “ingrata” missão a que se propôs – levar a cozinha criativa a bom porto e a um preço justo numa zona do interior de uma região tão tradicional como o Minho. Para o dia dos Namorados, o chef Renato Cunha irá preparar um menu exclusivo em harmonização com alguns grandes vinhos nacionais. (Ler Mais) […]

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