Blind

Foi no antigo palácio da família Campos Navarro, construído em 1861, que depois de várias e distintas vidas se instalou o luxuoso Hotel Torel Palace Porto (ver) e com ele o restaurante Blind. Se o hotel presta homenagem à literatura portuguesa e aos seus autores, o restaurante, como o próprio nome deixa transparecer, remete-nos para José Saramago e a obra Ensaio Sobre a Cegueira.

O espírito inquieto e criativo por trás do projecto é Vítor Matos, o chef estrelado que aqui acumula mais um projecto de consultoria, mas onde acaba por pôr sempre a mão na massa (como aconteceu aliás na noite da nossa visita). Ao chef sempre reconhecemos uma veia artística muito forte, das pinturas à louça, famosa internacionalmente, feita em parceria com a Vista Alegre, passando pelos empratamentos sempre minuciosamente executados, mesmo antes das trends do instagram.

A proposta do Blind passa por nos levar numa viagem de sentidos, emoções, vivências e inspirações que fazem parte da vida do chef, da sua infância aos seus sonhos, passando também por chefs e detalhes criativos que em certo momento o terão marcado. Tudo isto é servido num espaço intimista, escuro e simultaneamente sedutor desenhado por Isabel Sá Nogueira – que peca apenas pela rosa pendurada sobre a mesa não ser verdadeira e não poder assim acompanhar os casais mais românticos no final da refeição como uma emotiva lembrança.

Mas deixemos a minha veia romântica e passemos ao que nos traz até aqui, a degustação do Menu Blind Emotions (o restaurante trabalha apenas com menu de degustação que poderá ser de 10 ou 12 momentos). Na mesa somos rapidamente brindados com um flute de Sidónio Sousa Bruto, engarrafado em exclusivo para os hotéis Torel, ao que se seguiram dois cocktails de assinatura da casa, Touch – vodka, limão, violeta e clara de ovo, e Sound – gin, meloa, ginger beer e clara de ovo. Amuse-bouches – tramezzino de salmão, corneto, patinhos de foie e espresso martini

Rapidamente somos convidados a arrancar a refeição com um delicioso tramezzino de salmão curado, numa versão miniatura de uma delicada sanduíche de salmão, ervas e ovas de salmão, um corneto mini que nos remete para o clássico corneto de morango de toda a vida, mas que aqui é preparado com queijo das Ilhas, tomate e massa fina e crocante, uns patinhos de borracha que aqui não serviam para brincar no banho mas sim para mergulhar na untuosidade e riqueza do foie gras, que aliás combinou muito bem com o último momento, um shot de espresso martini. À Flor da Pele –  Lírio, gaspacho, tomate, coentros, pepino e azeitona
Arrancamos logo com um prato com a assinatura do chef a ficar bem evidente do plating ao número de elementos. Lírio marinado e levemente selado, diferentes texturas de pepino, tomate, azeitonas explosivas e texturas de coentros. Um prato repleto de elegância e frescura ideal para o início da degustação.

Seguiu-se o momento “Olhos vendados”, onde somos convidados a comer de olhos vendados e a adivinhar os elementos que compunham o prato unicamente através do seu sabor. Gamba do Algarve crua (o elemento mais fácil), gel de citrinos e uma envolvente espuma quente de alho francês, contrastaram bem com riqueza do creme de gema (que não identifiquei) e o funcho.

Um momento que não é de todo o que procuro no fine dining aos dias de hoje, mas que percebo a sua utilização, mais ainda para quem estiver a ser introduzido ao conceito. A julgar pelos rostos de encanto na sala, sou eu que não estou certo!

No copo um Lacrau Moscatel Galego 2022, que apesar de seco demonstra bem as características doces e tropicais da casta. Pão e manteiga

A bom ritmo continuamos com o pão que cada vez mais ganha espaço a meio dos menus, desta feita com “À luz da vela” composto por uma excelente seleção de pães de massa mãe da padaria Bom Miolo na Póvoa de Varzim, servidos com uma vela de manteiga aromatizada com óleo de trufa.

As Folhas a CairRaviolis de Abóbora, Boletus, sementes de abóbora, avelã e bolota
Um prato de conforto com boas nuances técnicas e repleto de sabor e texturas que se revelou num dos melhores da noite. Sabores terrestres, doces, ricos e equilibrados que conquistavam a cada colherada.

A harmonizar esteve um Procura na ânfora 2018 da Susana Esteban, cuja boa acidez e mineralidade fizeram um bom contraste com o prato.

A MaresiaRobalo a vapor, bivalves, algas e consommé de plâncton e caldo de peixe 
Um daqueles momentos que representam um mergulho no mar, o habitat ou o oceano. E foi isso mesmo que recebemos no prato, uma bomba de mar, com percebes, lingueirão e berbigão que casados com o bom caldo de plâncton nos transmitem uma sensação a mar irrepreensível. Além disso somos convidados a entrar no espírito Fat Duck em 2007, quando colocamos uns phones nos ouvidos em que o único som emitido é o do mar. Uma imersão no sabor mas também na envolvência do mar que resultou num ótimo prato que a título pessoal preferia apenas o peixe num ponto ligeiramente abaixo (ainda assim melhor do que a maioria do que vamos encontrando por aí).

Para este prato guardaram o vinho da noite, um Bairrada de vinhas velhas, blend de Maria Gomes e Bical que Vítor Matos engarrafou com o seu selo, Natura Calcariu 2016 com 60 meses de estágio em fuder usado de Mosel. Um vinho feito na Niepoort e selecionado em bom momento pelo chef. Um grande branco que representa bem o potencial dos brancos portugueses quando trabalhados de forma distinta.

Horta Marítima – Carabineiro, cenoura, gengibre, funcho, erva-príncipe e caviar
Como em qualquer restaurante com as aspirações ao estrelado em Portugal não poderia faltar o carabineiro (não que me importe nada… mas até podiam começar a apostar no alistado que prefiro). A riqueza de sabor do carabineiro (com cocção irrepreensível) contrastou bem com a doçura da cenoura, a salinidade do caviar e a frescura do funcho e dos restantes elementos.  Muito bom!

Acompanhou um Reserva Branco Quinta da Vacaria de 2020. Um perfil “clássico” do Douro com as castas típicas da região, idêntico aos demais que o enólogo executa na região. Um vinho que não me enche as medidas mas que cumpriu a sua missão de harmonizar. Mas digamos que não é fácil servir um branco “típico” depois do vinho anterior.

Carne na cinza – Ribeye maturada, aipo assado, alho negro, pimento assado, couve de bruxelas, trufa e molho de carne
Numa degustação há sempre pratos que nos marcam menos, e aqui foi o caso deste ribeye – boa carne, bom puré de aipo assado e bom molho, servido em quantidade reduzida para podermos com ele ligar todos os elementos do prato. O facto de a trufa também já não exibir toda a sua pompa e fragrância também contribuiu para um menor interesse do prato.

Chegando a vez de um tinto, bebeu-se um Quinta da Vacaria tinto 2020, com um perfil idêntico ao seu irmão branco, complexo e extraído com a touriga nacional a sobressair acompanhada pela marca da madeira.

Da Estrela – Compota de abóbora, gelado de requeijão, nougat e merengue
O momento dos queijos ou da pré sobremesa mais leve e fresca foi substituído pela conjugação clássica de requeijão e doce de abóbora. Conforto, sabor e texturas bem conseguidas numa boa primeira sobremesa.

A minha  InfânciaAlgodão doce, caramelos, macaron
O Qr code leva-nos à história do chef e da sobremesa que chega à mesa ao ritmo do chocalho, tão característico das vacas leiteiras dos campos transalpinos. Uma conjugação de doces e memórias com que faço facilmente reminiscência – a minha infância numa aldeia transmontana resultou muitas vezes na espera pelos doces com que os tios emigrantes nos presenteavam. Quanto à sobremesa onde os sabores mais doces e os elementos soltos repousavam sobre mousse de baunilha, mascarpone  e notas de fruta tropical. Muitos elementos com bastantes e distintas notas doces que preferi em separado que no conjunto geral.

I Have a Dream – Trufa de matcha, tartelete de yuzu e financier de wasabi
Com os petit fours o chef diz-nos que sonha fazer uma viagem pelo Japão (sonho que partilhamos, já agora!), uma boa trufa de matcha servida no bonsai, uma delicada e fresca tartelete de yuzu e um diferenciador financier de wasabi (neste caso da pasta e não da raíz). Simples, bom e eficaz!

A acompanhar as sobremesas esteve um Tawny Quinta da Vacaria 20 Anos, bastante mais interessante que os seus congéneres de mesa a fazer jus à história da Quinta. As suas notas de caramelo, café, especiarias e frutos secos funcionaram em plenitude com os doces servidos.

Nota positiva para o serviço, totalmente no feminino, executado com técnica e precisão aliada a uma certa descontração na conversa que é o ideal para um espaço em que se pretende que haja tanta interação entre sala e comensal. A chef de sala multiplica-se e bem entre várias funções pelo que um/a sommelier bem preparado/a seria a cereja necessária no topo do bolo.

A zona exterior do Blind

Considerações Finais
Há muito que acompanho o trabalho de Vítor Matos, se em tempos lhe reconhecia mais valor técnico do que sabor, isso mudou há vários anos com um prato de pombo que serviu no Antiqvvm, mais limpo de elementos adjacentes, com uma cocção perfeita e um sabor a roçar a perfeição. Nos dias de hoje é fácil provar a sua cozinha (são várias as consultorias que assina, do fine dining à gastronomia mais popular) mas nem tanto o que sai das suas mãos. Pelo que é sempre prazeroso revê-lo de jaleca a apresentar as suas criações. Quanto ao Blind é nítida a sua pretensão à tão almejada estrela – se conhecessemos uma checklist sobre “o que fazer” ou “o que não fazer” certamente teria um grande número de vistos assinalados no momento da avaliação, mas não diria que será já o seu momento. Um restaurante sem grandes altos e baixos, sem erros de maior  e que parece perfeito para quem procura introduzir-se no mundo do fine dining, com momentos divertidos de interação e desafio que ajudam a “quebrar o gelo” que muitas vezes se sente neste tipo de restaurante. O menu de degustação de 10 ou 12 momentos varia entre 50 criações do chef, mediante a sazonalidade dos produtos pelo que prometemos acompanhar outras viagens.

Para terminar só mais uma nota sobre o Natura calcariu 2016, é mesmo um grande branco português, pelo que se tiverem a sorte de se cruzarem com ele não deixem de o provar. Serão muito felizes!

Blind – Torel Palace Porto
Preços a partir de 100€ (sem vinhos)
Rua de Entreparedes 42 – Porto

English Version

Fotos: Flavors & Senses

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